quinta-feira, agosto 31, 2006

Rede


"Tentava escrever mas o suor corria-lhe pelo pescoço e pela testa. Perguntavam-lhe como se chamava, onde vivia, que idade tinha, e ela mentia maquinalmente: Susana. 35 anos, Lisboa. Onde exactamente? Ao pé do Aqueduto. E o que quer dizer aqueduto? Do outro lado, o interlocutor estúpido e inculto dizia chamar-se Ruben, ter 40 anos e viver também em Lisboa. Importava se era verdade? Não importava. Continuava a mentir e a fazer perguntas. Qual era o livro que mais gostara? Era um teste subtil que fazia sempre. Quando, do outro lado, se demorava a responder, era porque nem um livro se lera em toda a vida. Havia muitos assim. Que alem de não saberem escrever nunca tinham lido. “De k livro gostaste mais?” “Gostei komo? Não me lixes. És profeçora?” “Não, não sou professora.” E desligava repugnada, Os Homens dali diziam muitos palavrões. Mas, para ela palavrão era escrever professora com cedilha. Voltava ao chat com outro nome: Kassandra. “Hei, Kassandra, gosto do teu nome, keres teclar?” “Pode ser”, respondia, desiludida por ninguém saber que Cassandra foi a única que se recusara a Apolo. “De ke keres falar?” “Gostas de sexo?” “Gosto...” “De que gostas mais de fazer?” As vezes enfurecia-se: “Gosto de fazer de tudo, ora! Ou haverá aqui alguém que só goste de fazer algumas coisas??” O outro melindrava-se: “Só kero saber o que te dá mais prazer, o que te faz feliz...” Queria responder “O que me faria feliz era ter alguém mais interessante para conversar e não um estúpido como tu a fingir que se preocupa com a minha felicidade!” mas não podia responder assim, pois não?
“Gosto que me apertem nos braços e me dêem beijinhos”. “Só?”, perguntava ele. “não gostas de mais nada?” Coitado, precisava de tudo explicadinho. Gosto que me agarrem por trás. Me dêem banho!” Fora o calor que me interrompera. Mas também o que interessava? “Gosto de encher a banheira de gelo e meter-me lá dentro, em dias assim. Gelo feito de champanhe. E não só: gosto de ir jantar a bons restaurantes, com ar condicionado, e de comer sorbet.” “Sorbet? O que é sorbet?” Fingia não ler, continuava: “Sorbet de limão...sorbet de lima com champanhe...sorbet de melão com Grand Marnier ... Apetece-te?” Do outro lado alguém derrapava: “Não percebo as tuas falas, mas estás-me a fazer fome. Comias agora uns joaquinzinhos?” “Não”, respondia ela, com a camisola já colada ao corpo. “Comia agora um bisque de lagosta traçado com Pernod, depois de uma tranche de garoupa com crosta de ervas aromáticas, e depois um carré de chocolate com mirtilhos ou um biscuit glacê com molho de frutos vermelhos... Que tal?” Coitado. Do outro lado, o sujeito já disparatava: “ Eu gosto é de jaquinzinhos...” Desligava-se outra vez e rebatizava-se: Paulo. Desta vez escreveria um nome de homem. Paulo, por exemplo. Talvez alguém soubesse que o apóstolo começara por pregar na sinagoga de Damasco. “Sabes quem foi Paulo?” “Paulo? Paulo é o meu cunhado, que é do Sporting.” Desligou-se outra vez. Nem Susana. Nem Kassandra nem Paulo, não tinha nada para dizer àquela gente e, pior, ninguém tinha nada para lhe dizer. Desligou o computador e sorriu ao marido, a trabalhar no estirador ao lado. “Por hoje, acabei.” “Vou ficar aqui mais um bocadinho”, disse ele, “encontramo-nos na cama?” “Sim, na cama”, riu-se ela, “nunca se sabe...” Nem dez minutos demorou a juntar-se-lhe. “Já?”, perguntou, antes de adormecer. “Sim, hoje o chat estava sem graça nenhuma. Apanhei um travesti em crise de identidade e uma histérica que só me falava de sorbets...” “E tu? Não lhe respondeste que adoravas sorbets?” “Não. Na net, gosto de passar por básico...”
"

By Rita Ferro (algures nas "cor de rosa")



Se me perguntarem porque gostei tanto deste texto, vou responder que não sei.
Se me perguntarem novamente (e mesmo que não perguntem) tento arranjar a resposta que sei que anda por aqui.
Mas antes disso vou dizer: pergunta-me antes se gostei! E de seguida respondo: gostei e não.
E de resto...é suposto envergonhar-me de andar a ler uma autora pop? Não, divertem-me certas coisas. Identifico-me com outras, e abomino outras tantas.

Mas este é um texto tão e tão pouco “hoje” que tive de o transcrever.

Ps: Só transcrevi e postei integralmente dois textos, até hoje. Ambos da Rita...Afinal, se calhar sou mesmo um caso preocupante!

2 comentários:

Anónimo disse...

sim..realmente..mas mais preocupante que isso só mesmo os sapatos dourados da outra!!

B.A.B.E. disse...

só hoje o li.

a Rita Ferro surpreendeu-me. do pouco que li dela não fiquei com grande impressão. e do pouco que li sobre ela fiquei com muito má impressão.

li uma entrevista qualquer na visão há anos em que ela dizia que a pior consequência da fama era já não poder cortar as unhas e arrancar os pelos das pernas com uma pinça na praia.

achei "tiazorra em pele de povo". não gostei.

mas a este achei piada! ;)

e adoro mudar (de opiniao) pra melhor!